Por
Natalia Viana (Agência Pública, 15 de Maio de 2015)
Faz pouco mais de dois meses que ela se foi, um dia antes do seu
aniversário. Maria – vamos chamá-la assim – completaria 20 anos em 2 de
março. Ninguém diria que não era uma indiazinha como tantas que colorem as ruas
de São Gabriel da Cachoeira, município no noroeste do Amazonas, às margens do
rio Negro. Era baixinha, os cabelos negros sobre os ombros, as roupas justas,
chinelo de dedos. Mas Maria estava ali só de passagem. No seu enterro os
parentes contaram que tinham vindo rio abaixo para passar o período de férias
escolares, quando centenas de indígenas de diversas etnias deixam suas aldeias
e enchem a sede do município para resolver pendências burocráticas. Ali na
cidade, ela arrumou namorado, um militar, e passava os dias com ele, quando não
estava entre amigos. Mas nos últimos dias Maria andava triste: o casal havia
rompido o namoro. Estava estranha, nervosa. Os parentes contaram que chegou a
ter alucinações.
Os pais tinham achado bom o fim do namoro. Ninguém chegou a
conhecer de perto o tal soldado. Nunca conseguiram ver o seu rosto porque,
segundo contaram, quando ele vinha ao bairro do Dabaru, um dos mais pobres do
município, onde a família morava numa espécie de vilazinha com casas coladas
umas nas outras, ele sempre se escondia nas sombras formadas pela parca
iluminação. Tinha o rosto coberto pelas trevas da noite. Era branco? Era preto?
Era gente?
Na madrugada de sábado para domingo, dia 1o de
março, depois de ter passado a tarde e o começo da noite com o irmão mais velho
e amigos bebendo na praia do rio, Maria começou a se transformar de vez. Estava
agressiva. Os olhos já não eram os dela, contou o irmão, reviravam e mudavam de
cor enquanto ela gritava que os pais não gostavam dela, que era ele o filho
predileto. O irmão ainda arrastou Maria de volta, mas, quando chegaram em casa,
os pais não conseguiam enxergá-la. No lugar dela viam apenas algo escuro, uma
sombra. Um ser da escuridão. O pai não pôde nem levantar da rede no pequeno
quarto que dividia com os filhos. Ficou chorando, atônito. Maria entrou no
quarto ao lado, bateu a porta. Não conseguiram abri-la, embora não estivesse
trancada. Por uma fresta, viram quando ela amarrou uma corda e se enforcou. No
momento seguinte a porta finalmente abriu. Ela já estava morta.
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